- Quem é? Perguntou o padre.
A velha espreitou pela fechadura e anunciou:
- É João Loucomotiva.
O padre suspirou. João era um antigo guarda-freio emigrado lá na cidade e que enlouqueceu quando os comboios deixaram de circular. (...)
- Entre, por amor de Deus.
O antigo ferroviário sacudiu as mangas do casaco e passou a mão, em concha, a recolher o molhado que lhe escorria pelo rosto.
- Entre, meu amigo. Mas entre sem o burro.
Tarde demais. O asno já se instalara no abrigo e recusava o uso da força para voltar a transpor a porta. (...) O padre acabou aceitando a desordem natural das coisas. O asno escoiceou no chão e o som do casco ressoou pelo recinto. Era a proclamação da sua tomada de posse.
- Mas que raio de burro é esse?
- Esse burro vinha no barco.
- Mas que barco?
- Já falo tudo, senhor padre.
- Então fale, homem de Deus!
- Eu venho porque me mandaram chamar o senhor.
- Mandaram-me chamar?
- Por causa do desastre.
O padre pensou em silêncio: pronto, lá me vem ele com o devaneio do desastre. Fazia parte do delírio de João escutar comboios descarrilando nos pântanos, despenhando-se das pontes e dissolvendo-se no escuro dos túneis. Nunes pediu a Deus que o abastecesse de paciência e abrigasse aquela descarrilada criatura como se a igreja fosse a estação de caminhos-de-ferro que o desvairado há tanto procurava. Abriu os braços em direcção a Loucomotiva e pensou: sou um espantalho, tão pobre e falhado que, em vez de afastar, acabo atraindo a passarada. (...)
Págs. 97, 98.
A velha espreitou pela fechadura e anunciou:
- É João Loucomotiva.
O padre suspirou. João era um antigo guarda-freio emigrado lá na cidade e que enlouqueceu quando os comboios deixaram de circular. (...)
- Entre, por amor de Deus.
O antigo ferroviário sacudiu as mangas do casaco e passou a mão, em concha, a recolher o molhado que lhe escorria pelo rosto.
- Entre, meu amigo. Mas entre sem o burro.
Tarde demais. O asno já se instalara no abrigo e recusava o uso da força para voltar a transpor a porta. (...) O padre acabou aceitando a desordem natural das coisas. O asno escoiceou no chão e o som do casco ressoou pelo recinto. Era a proclamação da sua tomada de posse.
- Mas que raio de burro é esse?
- Esse burro vinha no barco.
- Mas que barco?
- Já falo tudo, senhor padre.
- Então fale, homem de Deus!
- Eu venho porque me mandaram chamar o senhor.
- Mandaram-me chamar?
- Por causa do desastre.
O padre pensou em silêncio: pronto, lá me vem ele com o devaneio do desastre. Fazia parte do delírio de João escutar comboios descarrilando nos pântanos, despenhando-se das pontes e dissolvendo-se no escuro dos túneis. Nunes pediu a Deus que o abastecesse de paciência e abrigasse aquela descarrilada criatura como se a igreja fosse a estação de caminhos-de-ferro que o desvairado há tanto procurava. Abriu os braços em direcção a Loucomotiva e pensou: sou um espantalho, tão pobre e falhado que, em vez de afastar, acabo atraindo a passarada. (...)
Págs. 97, 98.
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