Vamos começar pelo conselho útil: não é bom fazer voos longos em dias seguidos.
A data é 29 de Julho de 2008. O voo do dia anterior foi de Lisboa para Newark (New Jersey), durou 7 horas e meia e atrasou 5 fusos horários. O de hoje é de Newark NJ para San Jose (Califórnia), dura 5 horas e meia e atrasa 3 fusos horários. A descolagem era para ser às 6.10pm e acabou por ser às 7.30pm, hora a que já me apetecia uma sestazinha... mas isto de aviões é complicado: o espaço reduzido, o barulho contínuo, e as actividades (comidas, bebidas, vendas) a bordo não deixam a pessoa em paz.
Eu vou sentada na coxia com o corredor à esquerda. À minha direita vai uma cadeira vaga e ao lado dessa cadeira, junto à janela, vai uma senhora de cabelo todo branco, que já deve ter bem mais de 70 anos. A temperatura lá fora era superior a 35 graus e por isso trouxe vestida uma t-shirt sem mangas, até porque não costumo ter frio nos aviões. Mas neste, não sei o que se passa: fechei as saídas de ar por cima da minha cabeça e por cima do lugar vago ao meu lado, mas o ar frio das outras saídas de ar (dos bancos da frente e de trás, bem como o da senhora da janela) parecem estar todas viradas para mim... qual ventoinha a fazer voar o cabelo. É por isso que me enrolo no cobertor e ainda antes de o avião descolar já coloquei as pernas por cima do descanso do braço à minha direita. Descola o avião a alta velocidade e eu de lado com braço, tronco e face colados às costas do assento. Nada mau, vamos agora tentar dormir uma soneca... sabes que provavelmente não consegues mas tentas na mesma.
Vou entreabrindo os olhos para ver a paisagem lá fora à medida que o avião vai subindo, se bem que a senhora da janela vai tapando a pouca vista disponível. Não vale a pena tentar dormir porque pouco depois começam a passar as hospedeiras a distribuir bebidas e uma refeição fria. Assim que perguntam à senhora da janela “anything to drink” ela responde em muito alta voz um grande relambório, todo em alemão, do qual se conseguem perceber as palavras wasser e kaffee. Responde pois a hospedeira “a coffee and a glass of water?” e a outra YAH! Ora começamos bem, penso eu: a senhora não só não sabe falar inglês, como pensa que toda a gente percebe alemão. Mas coitada, vê-se que não é arrogância, pois sorri muito quando falam para ela, só deve é ser um bocado surda... mas desde que vá caladinha não há grande problema. Decido também interromper os meus planos de sesta e beber um cházinho a acompanhar umas cenouras descascadas... as companhias aéreas estão a deixar de servir porcarias! Lá abro a mesinha e fico ali enrolada na manta, com as pernas penduradas para o lado, feliz, a mastigar as cenouras e a gostar da Continental Airlines.
O avião corre contra o tempo, por isso o sol que se estava quase a pôr à saída de Newark vai ainda alto e ainda não dá ao horizonte sinais de desaparecer. Passa novamente a hospedeira passado meia hora a pegar o lixo que lhe entrego cordialmente, o meu e o da senhora alemã. E tento mais uma vez a minha sorte no sono... não deve dar em nada, mas tento na mesma.
O som do avião em movimento não ajuda nada os meus planos e lá vou abrindo os olhos para ver a cor do horizonte pela janela... há uma altura em que se consegue ver o espectro total, do mais claro amarelo para o azul mais escuro. Numa das vezes que abro os olhos a senhora alemã vira-se para mim, e apontando para o relógio, pergunta-me novamente a gritar, mas desta vez com um esforço para falar em inglês “do you have time?” e eu “yes, 8.35?” ao que ela responde muito intrigada “funf und dreizig??” e eu “yes, acht hur und funf und dreizig minuten” ela olha perplexa para o seu relógio que marca 2.35 e percebo que deve ter vindo da Alemanha nesse mesmo dia num voo anterior e feito ligação em Newark... há sempre quem esteja pior que nós, de facto! Está tão baralhada que nem se apercebe que falei para ela em alemão... e ainda bem, se não começava ali a conversar e eu tinha de lhe explicar que eu de facto não falava alemão, só me lembrava de umas poucas palavras que tinha aprendido nas poucas aulas de alemão que tive. Mas isso já eram complicações a mais e eu queria era tentar dormir, embora sem muita esperança.
Pelas 9 e meia passam novamente as hospedeiras com água que a senhora alemã aceita ao mesmo tempo que grita do alto dos seus pulmões: “how long?”, a hospedeira “three hours” a senhora horrorizada “THREE HOURS?!”, mas a hospedeira já lá vai na distribuição da água deixando-a perplexa a olhar para mim... eu sorrio no meio do sono e faço uma expressão facial que diz pouco mais que “pois é... uma chaga!” e ela lá fica toda contente a beber a sua águinha.
Acabada a água tenho uma breve visão da senhora distraida olhando pela janela, na altura em que passa a hospedeira com o saco do lixo perguntando para quem a ouve (eeeu!) “trash? trash?”... só que pois é: a senhora não ouve lá muito bem e quando dá por ela já lá vai. Resolve então pôr-se a gritar “duuu, DUUUUUUU!” que é como quem diz “oh tu, anda cááá!” ou em alternativa “mnina, mnina, mniiiinaaaaa, pshhhht!”. Mas claro que ela não vem. Eu mais uma vez tento apaziguar o ânimo da senhora e digo-lhe fazendo um sinal com a mão “she’ll come back around” que é como quem diz “ela vai ali e já volta...” a senhora encolhe os ombros e resigna-se com o copo vazio na mão.
Quando oiço novamente a hospedeira aproximar-se com o saco do lixo outra vez, abro os olhos e faço um movimento para pegar o copo da mão da senhora para deitar fora, mas ela, bem atenta desta vez, já estava de braço esticado para a hospedeira. Ao ver a minha intenção de ajudar, e depois de deitar o copo no lixo, abre um sorriso de avó, que vai de orelha a orelha, ao mesmo tempo que me põe a mão no joelho abanando-o levemente... palavras não disse, mas o sorriso e os olhos diziam só uma coisa: “obrigada querida, mas não é preciso: dorme, dorme que te faz bem! Estás muito cansadinha filha!”... e eu a ver tudo tipo filme de má qualidade que o sono ofusca. Lá esboço um sorriso de “naah, não faz mal, sempre às ordens. Eu bem tento dormir, mas não consigo... vá-se lá saber porquê!”
E pronto foi mais ou menos assim que se deu a ocorrência.
A data é 29 de Julho de 2008. O voo do dia anterior foi de Lisboa para Newark (New Jersey), durou 7 horas e meia e atrasou 5 fusos horários. O de hoje é de Newark NJ para San Jose (Califórnia), dura 5 horas e meia e atrasa 3 fusos horários. A descolagem era para ser às 6.10pm e acabou por ser às 7.30pm, hora a que já me apetecia uma sestazinha... mas isto de aviões é complicado: o espaço reduzido, o barulho contínuo, e as actividades (comidas, bebidas, vendas) a bordo não deixam a pessoa em paz.
Eu vou sentada na coxia com o corredor à esquerda. À minha direita vai uma cadeira vaga e ao lado dessa cadeira, junto à janela, vai uma senhora de cabelo todo branco, que já deve ter bem mais de 70 anos. A temperatura lá fora era superior a 35 graus e por isso trouxe vestida uma t-shirt sem mangas, até porque não costumo ter frio nos aviões. Mas neste, não sei o que se passa: fechei as saídas de ar por cima da minha cabeça e por cima do lugar vago ao meu lado, mas o ar frio das outras saídas de ar (dos bancos da frente e de trás, bem como o da senhora da janela) parecem estar todas viradas para mim... qual ventoinha a fazer voar o cabelo. É por isso que me enrolo no cobertor e ainda antes de o avião descolar já coloquei as pernas por cima do descanso do braço à minha direita. Descola o avião a alta velocidade e eu de lado com braço, tronco e face colados às costas do assento. Nada mau, vamos agora tentar dormir uma soneca... sabes que provavelmente não consegues mas tentas na mesma.
Vou entreabrindo os olhos para ver a paisagem lá fora à medida que o avião vai subindo, se bem que a senhora da janela vai tapando a pouca vista disponível. Não vale a pena tentar dormir porque pouco depois começam a passar as hospedeiras a distribuir bebidas e uma refeição fria. Assim que perguntam à senhora da janela “anything to drink” ela responde em muito alta voz um grande relambório, todo em alemão, do qual se conseguem perceber as palavras wasser e kaffee. Responde pois a hospedeira “a coffee and a glass of water?” e a outra YAH! Ora começamos bem, penso eu: a senhora não só não sabe falar inglês, como pensa que toda a gente percebe alemão. Mas coitada, vê-se que não é arrogância, pois sorri muito quando falam para ela, só deve é ser um bocado surda... mas desde que vá caladinha não há grande problema. Decido também interromper os meus planos de sesta e beber um cházinho a acompanhar umas cenouras descascadas... as companhias aéreas estão a deixar de servir porcarias! Lá abro a mesinha e fico ali enrolada na manta, com as pernas penduradas para o lado, feliz, a mastigar as cenouras e a gostar da Continental Airlines.
O avião corre contra o tempo, por isso o sol que se estava quase a pôr à saída de Newark vai ainda alto e ainda não dá ao horizonte sinais de desaparecer. Passa novamente a hospedeira passado meia hora a pegar o lixo que lhe entrego cordialmente, o meu e o da senhora alemã. E tento mais uma vez a minha sorte no sono... não deve dar em nada, mas tento na mesma.
O som do avião em movimento não ajuda nada os meus planos e lá vou abrindo os olhos para ver a cor do horizonte pela janela... há uma altura em que se consegue ver o espectro total, do mais claro amarelo para o azul mais escuro. Numa das vezes que abro os olhos a senhora alemã vira-se para mim, e apontando para o relógio, pergunta-me novamente a gritar, mas desta vez com um esforço para falar em inglês “do you have time?” e eu “yes, 8.35?” ao que ela responde muito intrigada “funf und dreizig??” e eu “yes, acht hur und funf und dreizig minuten” ela olha perplexa para o seu relógio que marca 2.35 e percebo que deve ter vindo da Alemanha nesse mesmo dia num voo anterior e feito ligação em Newark... há sempre quem esteja pior que nós, de facto! Está tão baralhada que nem se apercebe que falei para ela em alemão... e ainda bem, se não começava ali a conversar e eu tinha de lhe explicar que eu de facto não falava alemão, só me lembrava de umas poucas palavras que tinha aprendido nas poucas aulas de alemão que tive. Mas isso já eram complicações a mais e eu queria era tentar dormir, embora sem muita esperança.
Pelas 9 e meia passam novamente as hospedeiras com água que a senhora alemã aceita ao mesmo tempo que grita do alto dos seus pulmões: “how long?”, a hospedeira “three hours” a senhora horrorizada “THREE HOURS?!”, mas a hospedeira já lá vai na distribuição da água deixando-a perplexa a olhar para mim... eu sorrio no meio do sono e faço uma expressão facial que diz pouco mais que “pois é... uma chaga!” e ela lá fica toda contente a beber a sua águinha.
Acabada a água tenho uma breve visão da senhora distraida olhando pela janela, na altura em que passa a hospedeira com o saco do lixo perguntando para quem a ouve (eeeu!) “trash? trash?”... só que pois é: a senhora não ouve lá muito bem e quando dá por ela já lá vai. Resolve então pôr-se a gritar “duuu, DUUUUUUU!” que é como quem diz “oh tu, anda cááá!” ou em alternativa “mnina, mnina, mniiiinaaaaa, pshhhht!”. Mas claro que ela não vem. Eu mais uma vez tento apaziguar o ânimo da senhora e digo-lhe fazendo um sinal com a mão “she’ll come back around” que é como quem diz “ela vai ali e já volta...” a senhora encolhe os ombros e resigna-se com o copo vazio na mão.
Quando oiço novamente a hospedeira aproximar-se com o saco do lixo outra vez, abro os olhos e faço um movimento para pegar o copo da mão da senhora para deitar fora, mas ela, bem atenta desta vez, já estava de braço esticado para a hospedeira. Ao ver a minha intenção de ajudar, e depois de deitar o copo no lixo, abre um sorriso de avó, que vai de orelha a orelha, ao mesmo tempo que me põe a mão no joelho abanando-o levemente... palavras não disse, mas o sorriso e os olhos diziam só uma coisa: “obrigada querida, mas não é preciso: dorme, dorme que te faz bem! Estás muito cansadinha filha!”... e eu a ver tudo tipo filme de má qualidade que o sono ofusca. Lá esboço um sorriso de “naah, não faz mal, sempre às ordens. Eu bem tento dormir, mas não consigo... vá-se lá saber porquê!”
E pronto foi mais ou menos assim que se deu a ocorrência.
1 comentário:
Ocorrência perfeitamente descrita! Me fez rir! Lembrei que todas as vezes que tentamos aprender o alemão com minha mãe, somente ria! Isso não é uma lingua! é um código!! Tanto que qdo as tias vinham fazer visitas elas contavam seus segredos somente em alemão. Tudo que era proibido criança ouvir: alemão.
Abracos.
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