[Agosto de 1938]
(...) Olha, Pereira, disse o director, conhecemo-nos há pouco tempo, desde a fundação deste jornal, mas sei que és um bom jornalista, trabalhaste durante quase trinta anos como repórter, conheces bem a vida e tenho a certeza que me hás-de compreender. Farei o possível, disse Pereira. Pois bem, não estava à espera desta última coisa. Que coisa?, perguntou Pereira. O panegírico da França, disse o director, causou um grande descontentamento nos meios que contam. Que panegírico da França?, perguntou Pereira com ar surpreendido. Pereira!, exclamou o director, publicaste um conto de Alphonse Daudet que fala na guerra contra os alemães e que termina com a frase Viva a França. É um conto do século dezanove, respondeu Pereira. Será um conto do século dezanove, continuou o director, mas a verdade é que fala de uma guerra contra a Alemanha e tu não podes ignorar, Pereira, que a Alemanha é nossa aliada. O nosso governo não fez alianças, objectou Pereira, pelo menos oficialmente. Ora, Pereira, disse o director, vê se raciocinas, se não há alianças há pelo menos simpatias, fortes simpatias temos as mesmas ideias que a Alemanha, tanto em política interna como externa, e estamos a dar apoio aos nacionalistas espanhóis como a Alemanha. Mas na censura não levantaram objecções, argumentou Pereira, deixaram passar o conto sem problemas. Na censura são uns pacóvios, disse o director, uns analfabetos, o director da censura é um homem inteligente, é um amigo meu, mas não pode ler pessoalmente as provas de todos os jornais portugueses, os outros são funcionários, uns desgraçados polícias pagos para não deixarem passar palavras subversivas como socialismo e comunismo, não podiam compreender um conto de Daudet que termina com Viva a França, nós é que temos de estar vigilantes, que devemos ser prudentes, somos nós, os jornalistas, que temos experiência histórica e cultural, que devemos vigiar-nos a nós próprios. Eu é que sou vigiado, afirma ter dito Pereira, de facto estou a ser vigiado por alguém. Explica-te melhor, Pereira, disse o director, que queres dizer com isso? Quero dizer que tenho uma telefonista na redacção, disse Pereira, deixei de receber chamadas directas, têm de passar pela Celeste, a porteira do prédio. Em todas as redacções é assim, replicou o director, se estiveres ausente há sempre alguém que recebe as chamadas e que responde por ti. Sim, disse Pereira, mas a porteira é uma informadora da polícia, tenho a certeza. Deixa-te disso, Pereira, disse o director, a polícia é que nos protege, vela pelo nosso sono, devias estar-lhe grato. Eu não estou grato a ninguém, senhor director, apenas me sinto grato ao meu profissionalismo e à recordação da minha mulher. Devemos estar sempre gratos às boas recordações, condescendeu o director, mas tu, Pereira, deves mostrar-me a página cultural antes de a publicares, é isso que exijo. Mas eu tinha-lhe dito que era um conto patriótico, insistiu Pereira, e o senhor aprovou dizendo que nos tempos que correm há necessidade de patriotismo. O director acendeu um cigarro e coçou a cabeça. De patriotismo português, disse, não sei se me entendes, Pereira, de patriotismo português, tu não fazes senão publicar contos franceses, e os franceses não nos são simpáticos, não sei se me entendes, mas ouve, os nossos leitores precisam de uma boa página cultural portuguesa, ...
(...) Olha, Pereira, disse o director, conhecemo-nos há pouco tempo, desde a fundação deste jornal, mas sei que és um bom jornalista, trabalhaste durante quase trinta anos como repórter, conheces bem a vida e tenho a certeza que me hás-de compreender. Farei o possível, disse Pereira. Pois bem, não estava à espera desta última coisa. Que coisa?, perguntou Pereira. O panegírico da França, disse o director, causou um grande descontentamento nos meios que contam. Que panegírico da França?, perguntou Pereira com ar surpreendido. Pereira!, exclamou o director, publicaste um conto de Alphonse Daudet que fala na guerra contra os alemães e que termina com a frase Viva a França. É um conto do século dezanove, respondeu Pereira. Será um conto do século dezanove, continuou o director, mas a verdade é que fala de uma guerra contra a Alemanha e tu não podes ignorar, Pereira, que a Alemanha é nossa aliada. O nosso governo não fez alianças, objectou Pereira, pelo menos oficialmente. Ora, Pereira, disse o director, vê se raciocinas, se não há alianças há pelo menos simpatias, fortes simpatias temos as mesmas ideias que a Alemanha, tanto em política interna como externa, e estamos a dar apoio aos nacionalistas espanhóis como a Alemanha. Mas na censura não levantaram objecções, argumentou Pereira, deixaram passar o conto sem problemas. Na censura são uns pacóvios, disse o director, uns analfabetos, o director da censura é um homem inteligente, é um amigo meu, mas não pode ler pessoalmente as provas de todos os jornais portugueses, os outros são funcionários, uns desgraçados polícias pagos para não deixarem passar palavras subversivas como socialismo e comunismo, não podiam compreender um conto de Daudet que termina com Viva a França, nós é que temos de estar vigilantes, que devemos ser prudentes, somos nós, os jornalistas, que temos experiência histórica e cultural, que devemos vigiar-nos a nós próprios. Eu é que sou vigiado, afirma ter dito Pereira, de facto estou a ser vigiado por alguém. Explica-te melhor, Pereira, disse o director, que queres dizer com isso? Quero dizer que tenho uma telefonista na redacção, disse Pereira, deixei de receber chamadas directas, têm de passar pela Celeste, a porteira do prédio. Em todas as redacções é assim, replicou o director, se estiveres ausente há sempre alguém que recebe as chamadas e que responde por ti. Sim, disse Pereira, mas a porteira é uma informadora da polícia, tenho a certeza. Deixa-te disso, Pereira, disse o director, a polícia é que nos protege, vela pelo nosso sono, devias estar-lhe grato. Eu não estou grato a ninguém, senhor director, apenas me sinto grato ao meu profissionalismo e à recordação da minha mulher. Devemos estar sempre gratos às boas recordações, condescendeu o director, mas tu, Pereira, deves mostrar-me a página cultural antes de a publicares, é isso que exijo. Mas eu tinha-lhe dito que era um conto patriótico, insistiu Pereira, e o senhor aprovou dizendo que nos tempos que correm há necessidade de patriotismo. O director acendeu um cigarro e coçou a cabeça. De patriotismo português, disse, não sei se me entendes, Pereira, de patriotismo português, tu não fazes senão publicar contos franceses, e os franceses não nos são simpáticos, não sei se me entendes, mas ouve, os nossos leitores precisam de uma boa página cultural portuguesa, ...
Antonio Tabucchi, Afirma Pereira, capítulo 21, pp. 170-2
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