20 fevereiro, 2008

Numa sala perto de mim #48

Buena Vista Social Club, 1999

Vi ontem mais um filme não tão recente de Wim Wenders, onde a música é, obviamente, a mensagem central. Acredito que os autores nada mais quisessem do que mostrar a esquecida herança musical cubana com os verdadeiros protagonistas ainda vivos*. Mas ao ver mais de hora e meia de imagens de Havana e de Nova Iorque e de pessoas contando a sua acidentada história, pus-me a pensar no regime Cubano desde 1959 e na recente renúncia de Fidel.

As imagens de estradas com buracos, de carros a caír aos bocados, de casas degradadas, de (muita) ferrugem por todo o lado, são acompanhadas por um belissimo ritmo de instrumentos caribenhos e por vozes entoando canções de outros tempos. Os personagens vão contando a sua história: onde nasceram, em que condições, como viveram, como se dedicaram à música, etc. Vejo neles figuras que poderiam ser do meu avô que também teve uma vida difícil e até tinha interesse pela música e por modas antigas. A diferença é que pelas ruas, velhos e novos conheciam aquelas canções, como se tivessem parado no tempo e não tivessem aprendido outras. Sem nunca lá ter estado, tive a sensação que tudo tinha parado em Havana: as estradas, os prédios, os carros, foram certamente bonitos, em tempos, mas com o passar dos anos não viram mais tapetes de alcatrão, ou obras de conservação.


Um edifício, no entanto, estava altamente conservado. Tinha aspecto de teatro antigo (tipo S. Carlos), com altos tectos de estuque trabalhado, colunas de talha dourada e uma escadaria larga e imponente que a equipa de filmagem subiu mostrando as alcatifas aspiradas e as cores vivas das paredes. O piso de cima era enorme e amplo. Decorriam ali aulas de ballet para crianças (todas meninas) que não deviam ainda ter 10 anos. A um canto um piano e um pianista (com 80 anos) que era um dos mais dotados músicos do club. E comecei a pensar que era uma nobre profissão tocar piano para aulas de ballet, mas seria essa a melhor ocupação para aquele altamente qualificado recurso humano? Estaria aquele edifício a ser empregado da melhor maneira? Numa economia onde o mercado não funciona as distorções são brutais! Depois pensei que se o mercado tivesse funcionado desde 1959, talvez as músicas antigas ainda existissem, mas não nas bocas de toda a gente. Morreriam com os músicos um a um e passariam certamente ao lado da sociedade de consumo virada para o que é novo e actual, num perpétuo movimento de evolução natural. O filme termina com a passagem do grupo pelo Carnegie Hall em Nova Iorque e com as impressões de vários dos músicos sobre o que vêem e ouvem nas ruas da cidade. Ficaram-me as expressões:

actividade, actividade, actividade, isto é cheio de vida!
quem me dera poder trazer a minha senhora para ver tudo isto!
já viste aquele belissimo prédio?

A propósito de Fidel e das escolhas que fez por um país durante tantos anos... ficou a música conservada, mas trazida para o exterior por estrangeiros; ficou o deprimente atraso pelas ruas; e ficaram pessoas a pagar por isso. Serão porventura felizes (talvez mais), mas não lhes foi dado a escolher o caminho da felicidade... é como passar um atestado de estupidez às populações: assumir que não são capazes de fazer as suas escolhas e, pior que isso, condená-las a uma vida de sacrifício... serão, eventualmente, mais felizes e terão boa música, nada mais.

Dos gardenias para ti...
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* Felizmente Wim Wenders fez o filme para que o registo ficasse para sempre imortalizado já que as pessoas, essas, não podem durar sempre: numa breve busca vi que desde 1999, seis dos membros do club já morreram.

1 comentário:

Atlantico Central disse...

"Havia um Portugal adormecido e alguns portugueses terrivelmente acordados."

(esses, a quem falta o sono, fogem de Cuba)