28 janeiro, 2012

Palavras lidas #182


Justina desceu a escada. Vestia luto carregado e, assim, muito alta e fúnebre, com os cabelos pretos divididos ao meio por uma risca larga, parecia um boneco mal articulado, demasiado grande para mulher e sem o menor sinal de graça feminina. Só os olhos negros, profundos nas olheiras maceradas de diabética, eram paradoxalmente belos, mas tão graves e sérios que a graça não morava neles.
Ao chegar ao patamar, parou junto da porta que ficava defronte da sua e aproximou o ouvido. De dentro não vinha qualquer rumor. Fez um trejeito de desprezo e afastou-se. Quando ia a entrar, ouviu abrir-se uma porta no andar de cima e, logo a seguir, um ruído de vozes. Ajeitou o capacho para se dar um pretexto para não sair dali.
De cima vinha um diálogo animado:
-- Ela o que não quer é ir trabalhar! -- dizia uma voz feminina com asperezas de irritação.
-- Seja lá o que for. É preciso cuidado com a pequena. Está na idade perigosa -- respondeu uma voz de homem. -- Nunca se sabe o que essas coisas dão.
-- Qual idade perigosa, qual quê? Hás de ser sempre o mesmo. Com dezanove anos, idade perigosa? Isso só teu!...
Justina achou conveniente sacudir o capacho com força para anunciar a sua presença. A conversa, em cima interrompeu-se. O homem começou a descer a escada, ao mesmo tempo que dizia:
-- Não a obrigues a ir. Se houver alguma novidade telefona-me para o escritório. Até logo.
-- Até logo, Anselmo.
Justina cumprimentou o vizinho com um sorriso sem amabilidade. Anselmo passou, fez um solene gesto na direcção da aba do chapéu e articulou com belo timbre uma saudação cerimoniosa. A porta da escada, em baixo, teve um bater cheio de personalidade, quando ele saiu. Justina cumprimentou para cima:
-- Bom dia, D. Rosália.
-- Bom dia, D. Justina.
-- Que tem a Claudinha? Está doente?
-- Como soube?
-- Estava aqui a sacudir o capacho e ouvi o seu marido. Pareceu-me perceber...
-- Aquilo é manha. O meu Anselmo é que não pode ouvir a filha queixar-se. É o ai Jesus... Diz ela que lhe dói a cabeça. Mândria é que ela tem. Tão grande é a dor de cabeça que já está outra vez a dormir!
-- Nunca se sabe, D. Rosália. Foi assim que eu fiquei sem a minha filha, que Deus haja. Não era nada, não era nada, e lá se foi com a meningite... --Tirou um lenço e assoou-se com força. Depois, continuou:-- Coitadinha... Com oito anos... Não me esquece... Está agora a fazer dois anos, lembra-se, D. Rosália?
Rosália lembrava-se e enxugou uma lágrima de circunstância. Justina ia insistir, lembrar pormenores já sabidos, apoiada à compaixão aparente da vizinha, quando uma voz rouca lhe cortou as palavras:
-- Justina!
O rosto pálido de Justina tornou-se de pedra. Continuou a conversar com Rosália até que a voz se ouviu mais alta e violenta:
-- Justina!!!
-- Que é? --perguntou.
-- Faz favor de vir para dentro. Não quero conversas na escada. Se estivesse tão farta de trabalhar como eu, não tinha disposição para dar à língua!
Justina encolheu os ombros com indiferença e prosseguiu a conversa. Mas a outra, incomodada pela cena, despediu-se. Justina entrou em casa. Rosália desceu alguns degraus e apurou o ouvido. Através da porta passaram exclamações ásperas. Depois, subidamente o silêncio.
Era sempre assim. Ouvia-se o homem ralhar, depois a mulher pronunciava algumas poucas e inaudíveis palavras e ele calava-se. Rosália achava isto muito esquisito. O marido de Justina tinha fama de brutamontes, com o seu corpanzil inchado e os seus modos grosseiros. Ainda não chegara aos quarenta anos e parecia mais velho, por causa do rosto flácido, de olhos papudos e beiço reluzente sempre caído. Ninguém percebia como e por quê dois seres tão diferentes tinham casado. Verdade que também ninguém se lembrava de os ter visto juntos na rua. E, ainda, ninguém compreendia como duas pessoas nada bonitas (os olhos de Justina eram belos e não bonitos) pudera nascer uma filha de tal maneira graciosa como fora a pequena Matilde. Dir-se-ia que a Natureza se enganara e que, depois, descobrindo o engano, se emendara fazendo desaparecer a criança.

pp. 20-25
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Eis um excerto do início do livro esquecido de José Saramago, Claraboia escrito em 1953, mas publicado postumamente em 2011. Nas palavras do autor:

"É a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo. Acho que o livro não está mal construído. Enfim, é um livro também ingénuo, mas que, tanto quanto me recordo, tem coisas que já têm que ver com o meu modo de ser."

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