“(...)
há camaradas que, às vezes, parece que
não percebem as dificuldades que atravessamos. Há dias, na reunião semanal de
trabalho, apareceu um abaixo-assinado com vinte e tal nomes a reclamar aumentos
salariais de 10 por cento para mulheres e aprendizes e 20 por cento para os
homens.
O
Américo tentou explicar que não era possível aumentar salários agora, mas
caíram-lhe vários em cima e a discussão azedou
com o Hernani a fazer-lhe frente:
-
Camarada Américo, por favor, não me venha com essa conversa
de que não há dinheiro para aumentar os salários! Isso foi o que nós ouvimos
dos patrões toda a vida!
-
Pois, camarada Hernani, mas agora os patrões somos nós...
-
Por isso mesmo – volveu o Hernani. – Se os patrões somos nós,
o dinheiro é nosso e nós é que temos de decidir se há ou não dinheiro para
aumentos.
“Apoiado!“,
“É isso mesmo!”, “O dinheiro é nosso!”, gritaram várias vozes na sala. O
Américo levantou as mãos para impor a ordem. Estava a começar a ficar irritado.
-
O dinheiro é nosso, e então? É para deitar fora?
-
Não! É para dar de comer às nossas mulheres e filhos! –
gritou o Isménio, a quem nunca tinham ouvido gritar.
(...)
O Américo olhava-os, não parecendo acreditar no que estava a ouvir.
-
Vocês estarão bêbados ou são inconscientes? Se aumentarmos os
ordenados agora, onde é que vamos buscar o dinheiro para fazer as sementeiras e
tudo o resto? E se não as fizermos, com que dinheiro pagamos os ordenados daqui
a meses?
-
- Pede-se ao Crédito Agrícola – interveio o Camilo Léguas,
calmamente.
-
Pede-se ao Crédito Agrícola? E tu achas que é só pedir? Achas
que eles não exigem garantias, que não exigem ver a nossa contabilidade e saber
a situação em que estamos?
-
Ó camarada, desculpa lá – volveu o Camilo Léguas. – Mas os
bancos não são do povo, agora? Para que servem ser do povo?
(...)
-
Pois é, mas parece que há muita gente que ainda não entendeu
bem que as coisas mudaram com a Reforma Agrária: o banco está aí para nos
ajudar e ninguém está aqui para continuar a ser explorado! Desta vez fez-se
silêncio. O Américo parecia mesmo espantado:
-
Explorado? Explorado por quem?
O
Hernani ficou calado.
-
Explorado por quem, ó Hernani? Diz-me lá...
-
Por quem, não interessa, camarada... Se não recebemos o que
merecemos, estamos a ser explorados. Era assim que nos diziam, não era? A mim,
tanto me faz ser explorado por um patrão como por uma direção! O que eu não
quero é continuar a ser explorado!"
Pág.
82, 83, 84 in “Madrugada Suja"
1 comentário:
Não interessa entender, o que interessa é reivindicar. Infelizmente a cultura do protesto pelo protesto ainda anda por aí...
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