25 agosto, 2013

Palavras lidas #226

“(...) há camaradas que, às vezes,  parece que não percebem as dificuldades que atravessamos. Há dias, na reunião semanal de trabalho, apareceu um abaixo-assinado com vinte e tal nomes a reclamar aumentos salariais de 10 por cento para mulheres e aprendizes e 20 por cento para os homens.
O Américo tentou explicar que não era possível aumentar salários agora, mas caíram-lhe vários em cima e a discussão azedou  com o Hernani a fazer-lhe frente:
-       Camarada Américo, por favor, não me venha com essa conversa de que não há dinheiro para aumentar os salários! Isso foi o que nós ouvimos dos patrões toda a vida!
-       Pois, camarada Hernani, mas agora os patrões somos nós...
-       Por isso mesmo – volveu o Hernani. – Se os patrões somos nós, o dinheiro é nosso e nós é que temos de decidir se há ou não dinheiro para aumentos.
“Apoiado!“, “É isso mesmo!”, “O dinheiro é nosso!”, gritaram várias vozes na sala. O Américo levantou as mãos para impor a ordem. Estava a começar a ficar irritado.
-       O dinheiro é nosso, e então? É para deitar fora?
-       Não! É para dar de comer às nossas mulheres e filhos! – gritou o Isménio, a quem nunca tinham ouvido gritar.
(...) O Américo olhava-os, não parecendo acreditar no que estava a ouvir.
-       Vocês estarão bêbados ou são inconscientes? Se aumentarmos os ordenados agora, onde é que vamos buscar o dinheiro para fazer as sementeiras e tudo o resto? E se não as fizermos, com que dinheiro pagamos os ordenados daqui a meses?
-       - Pede-se ao Crédito Agrícola – interveio o Camilo Léguas, calmamente.
-       Pede-se ao Crédito Agrícola? E tu achas que é só pedir? Achas que eles não exigem garantias, que não exigem ver a nossa contabilidade e saber a situação em que estamos?
-       Ó camarada, desculpa lá – volveu o Camilo Léguas. – Mas os bancos não são do povo, agora? Para que servem ser do povo?
(...)
-       Pois é, mas parece que há muita gente que ainda não entendeu bem que as coisas mudaram com a Reforma Agrária: o banco está aí para nos ajudar e ninguém está aqui para continuar a ser explorado! Desta vez fez-se silêncio. O Américo parecia mesmo espantado:
-       Explorado? Explorado por quem?
O Hernani ficou calado.
-       Explorado por quem, ó Hernani? Diz-me lá...
-       Por quem, não interessa, camarada... Se não recebemos o que merecemos, estamos a ser explorados. Era assim que nos diziam, não era? A mim, tanto me faz ser explorado por um patrão como por uma direção! O que eu não quero é continuar a ser explorado!"

Pág. 82, 83, 84 in “Madrugada Suja"

1 comentário:

Atlantico Ocidental disse...

Não interessa entender, o que interessa é reivindicar. Infelizmente a cultura do protesto pelo protesto ainda anda por aí...