01 dezembro, 2010

Numa sala perto de mim #134


José e Pilar (2010) chegou às salas no ano em que morreu Saramago. Nunca achei que Saramago dissesse algo de totalmente inovador, mas a maneira de expor o seu eterno descontentamento era de facto única. Vivo desassossegado, escrevo para desassossegar... é a frase que fica.

Lembro-me da única vez que vi e ouvi Saramago numa palestra que deu na Universidade de Nova Iorque. Na altura, recém-chegada aos EUA, escrevi aos meus amigos em Portugal a contar o feito... segue a crónica velha de dez anos.
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On Fri, Oct 27, 2000 at 7:32 PM, CR wrote:

----Original Message Follows----
From:
To:
Subject: JOSÉ SARAMAGO
Date: Mon, 23 Oct 2000 16:10:03 -0700

The Department of Spanish and Portuguese (NYU), the Institute Camões, The king Juan Carlos I Center, and Harcourt Brace would like to invite you to a talk by Portuguese writer and 1998 Nobel Prize winning JOSÉ SARAMAGO. It will be held on Thursday, October 26, 2000, at the King Juan Carlos I Center (NYU), 53 Washington Square South, from 2:00 pm to 3:00 pm.
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Foi esta a mensagem que recebi há dias a anunciar a palestra que o José Saramago iria dar ontem na NYU (mas já sabia primeiro, gracas ao teu mail Maria José)... depois de muito considerar, uma vez que se sobrepunha com a minha aula da tarde das 2 as 4, lá fui... "logo falo com o professor" pensei.

Foram 45 minutos a ouvir um homem de 78 anos, que apesar de nada dizer de espectacularmente novo, expõe as suas preocupações (os problemas que lhe "atormentam o pensamento", como ele próprio disse) de uma forma tão indignada, que nos faz olhar a realidade de outra forma.

Falou dos seus últimos três livros: Ensaio sobre a Cegueira, Todos os Nomes e A Caverna (este último acabado de escrever há um mês, só será lançado em Portugal e nos países lusofonos em Novembro), nos quais se começou a preocupar mais com a "pedra" e não com a sua superfície (a "estátua"), como até então tinha feito em todos os seus livros.

Afirmou que toda a humanidade vivia numa completa cegueira... uma humanidade que tinha escrito A Divina Comédia e cometido atrocidades em Aushwitz... uma humanidade que gasta milhões em produtos de higiene pessoal e que vive nas cidades mais sujas, sem sequer se dar conta do lixo quando sai à rua. O homem que diz de si próprio ser um ser racional, e o único ser cruel a face da terra, sendo inclusivamente capaz de cometer atrocidades contra o seu próprio semelhante.

"O mundo é um espectaculo de crueldade infinita"... é mais facil chegar a Marte com uma máquina que irá estudar as características das pedras daquele planeta ("como se isso me interessasse para alguma coisa"), do que matar a fome no mundo... "como é possível morrer-se de fome num mundo que produz mais que o suficiente para todos os seus habitantes?", "pode morrer-se de câncro, tifo, mas fome? Esta é a morte mais indigna que pode existir!".

Falou ainda sobre a sua teoria de criação do universo: "não faz sentido que Deus nos tenha criado para nos colocar num remoto e insignificante planeta de uma remota e insignificante galáxia... por isso, penso que Deus criou o universo para nós, onde habitávamos inicialmente em toda a sua extensão... mas Deus, ao ver o que estávamos a fazer disse: ‘deixa-me livrar desta gente’... e colocou-nos neste pequeno planeta para deixarmos o restante universo limpo e puro". Por isso, a humanidade é um projecto em "lento progresso, ou em constante retrocesso".

Vivemos numa sociedade em que as Universidades e a Escola se demitiram do papel de formação dos individuos, assentando a sociedade em três pilares básicos: shopping centers (as catedrais do nosso tempo, e não as Universidades), discotecas e estádios desportivos. É como se a Alegoria da Caverna escrita há 2400 anos atrás, previsse precisamente a sociedade em que hoje vivemos, num mundo de sombras que julgamos ser o real. "Ou mudamos a vida, ou não mudaremos de vida"...

Desculpem se vos dei uma seca de morte, sei que alguns não apreciam José Saramago, e outros talvez não conheçam a sua obra... mas gostei de partilhar estas ideias com vocês. Sei que assististe, Maria José, mas agora estás incluida na minha lista de mails colectivos... nada a fazer!

Fiquem bem. Beijinhos,

CR

(Não me esqueci do tal mail do Basebol e do Bowling... brevemente num computador perto de si!!)

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