23 março, 2006

Palavras lidas # 3


O Osso

Há ocasiões em que me pergunto por que motivo, cada vez com mais frequência, regresso à Beira Alta, e a única resposta é que me sinto um cão que deixou por aqui, não sei bem onde, um osso enterrado, que me lembro do osso sem ter a certeza de que osso é que era nem em que lugar o escondi e, no entanto, necessito encontrá-lo como se o osso fosse, para mim, uma questão vital. Não como se o osso fosse: o osso, qualquer que ele seja, é uma questão vital. O problema consiste no facto de com os anos terem mudado quase tudo: tantos prédios novos, tantas ruas, tanta gente estranha. Reconheço algumas casas
poucas
a igreja de S. Miguel, claro, o cemitério, claro, pedaços de travessas, restos de pinhal. Até a feira mudou: já não existem leitões, nem barros, nem ourives, os ourives que partiam de bicicleta, em bando, vestidos de preto, com molas de roupa na dobra das calças. (...) O cheiro, no entanto, mantém-se, reconheceria este arzinho não importa onde. E a serra igual, em manhãs assim, nítida de uma ponta a outra do horizonte. Ao construírem uma destas rotundas, um destes edifícios, terão, sem darem conta, levado o meu osso consigo? Um osso, acho eu, feito de tanta coisa: pessoas, tardes intermináveis com uma pedra de mica na mão, o correio das seis. A vindima. A loja do Senhor Casimiro. Eu. Os pinheiros e pinheiros, em alguns pontos tão espessos que o ar custava a entrar. Farejo por aqui e por ali sem achar nada, nem sequer a minha avó a dizer
- Filho
sobretudo nem sequer a minha avó a dizer
- Filho
uma maneira de dizer
- Filho
que mais ninguém dizia assim.
- Filho
dizia ela, e tudo em paz a seguir. (...)

Sem comentários: