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Acautelou-se em não passar perto dela, contornou a cama e foi sentar-se do outro lado, à cabeceira da outra cama. A tia não estava a dormir, parecia estar sempre a dormir, mas ao menor ruído abria os olhos. Quando o viu chegar, retirou o tubo do oxigénio. Fazia questão em que a vissem como se o seu corpo não tivesse sido devastado pela doença, e mesmo deitada de costas conseguiu mirá-lo da cabeça aos pés, reparou logo na bengala, ter-lhe-ía porventura lido o sofrimento no rosto, embora as dores mais agudas tivessem passado com os calmantes. Que te aconteceu?, perguntou, ontem estavas bem. Começou esta manhã, disse ele, não faço ideia, falei com o médico, parece que a minha coluna deu outra vez de si como em Maio do ano passado, vai ser preciso outra radiografia, trato disso quando puder. Ela acenou-lhe com um dedo, em jeito de aviso: na Itália, os buracos só resultam se forem financeiros, murmurou, hoje a senhora da cama aqui ao lado passou a tarde a ver televisão, exigiu um televisor, diz que tem direito a isso porque paga o quarto, deram-lhe uns auriculares para meu sossego, a certa altura entrevistaram aquele emproado da Telecom que abriu um buraco de não sei quantos milhões e bem se governou com o rombo. Infelizmente o meu rombo foi só na coluna, replicou ele. A conversa era segredada ao ouvido, não fosse a dona do restaurante acordar e pôr-se a contar a segunda parte da receita das tagliatelle com lagosta. Não voltes mais, disse ela, dás cabo de ti sentado nessa cadeira dia e noite, com a coluna nesse estado, deixa-te ficar uns dias em casa. Nem penses!, disse ele, desculpa, ía ficar em casa de papo para o ar para fazer a vontade ao médico e tu aqui nesta cama?, em casa dá-me a neura, assim ao menos conversamos. Não digas asneiras, disse ela, conversamos uma ova, digo umas três palavras por dia, se tanto, não tenho fôlego para mais. E sorriu. Era estranho aquele sorriso no seu rosto; na máscara de sofrimento desenhada pela doença aquele sorriso restituía a mulher lindíssima de maçãs salientes e olhos enormes que o mal sepultara num inchaço difuso, como se voltasse teimosamente à superfície a jovem que em menino lhe servira de mãe quando a sua própria mãe não podia fazer de sua mãe. E ocorreu-lhe uma imagem que a memória apagara, uma cena precisa, a mesma expressão que a tia ostentava agora no rosto, e a sua voz a dizer à irmã: não te preocupes, vai sossegada para o hospital que eu trato do menino como se fosse meu, sem pensar em mais nada. E de seguida chegou-lhe a imagem de Enzo, emergindo de um tempo infinito apareceu Enzo, o judicioso estudante de direito, o tão composto e tão educado Enzo, que concluído o curso havia de estagiar no escritório do avô porque entretanto teria casado com a tia, e como era prestável Enzo, toda a gente o dizia, e continuando a emergir do poço das recordações viu Enzo gesticular e gritar, ele, tão composto e tão educado, a gritar à tia que ela era doida: mas tu és doida, eu às voltas com o exame da Ordem e dá-te para ires para a serra com o garoto, quando estamos para casar! E voltou a ver-se como então era, um miúdo franzino, já com óculos de míope, não percebia, e porquê também aquela dor constante no joelho esquerdo, não queria ir para os Dolomitas, ficavam longe, e lá na serra não podia brincar aos polícias e ladrões com o seu amigo Franco, a tia voltou-se de repente, voz gélida e grave, nunca a ouvira falar naquele tom, Enzo, és incapaz de perceber, és um desgraçado, e és também um pouco fascista, ouvi dizer que com os teus amigos criticavas o meu pai pelas suas ideias, este miúdo tem uma tuberculose num joelho, precisa do ar da serra, e quem o leva para a serra sou eu com o meu dinheiro, não com o teu, que não o tens, a não ser o que o meu pai te facilita todos os meses por caridade, e se estiveres decidido a ir dar uma curva, chegou a altura certa. Ir dar uma curva: seria possível que a tia tivesse usado aquela expressão? E no entanto aquelas palavras voltavam a ecoar nos seus ouvidos: ir dar uma curva.
Passou o resto da tarde a falar-me das suas pedras na vesícula, murmurou-lhe ela ao ouvido, está-se mesmo a ver que a internaram num serviço como este à conta de umas pedras na vesícula, quais pedras, coitadita, e depois põe-se a ver o Big Brother, que é o seu programa favorito, eu fingi que estava a dormir, então tirou os auriculares e baixou o som mas mesmo assim dava para eu ouvir, não estive para chamar as enfermeiras, que é que queres, educar o povo é perder tempo, aliás este povo agora tem dinheiro e quem o educou foi o Big Brother, por isso mesmo votam nele, é um ciclo vicioso, votam em quem os educou, perdeste o fim das tagliatelle com lagosta, mas eu fiz questão de satisfazer a minha curiosidade: sabes quanto é que ela cobra por uma dose de tagliatelle àquela clientela exigente?, cinquenta euros, e é lagosta congelada, como acabou por confessar. Dir-se-ía que não lhe apetecia falar mais, rodara a cabeça na almofada. Mas ainda murmurou: Ferruccio, apetece-me dizer certas palavras que nunca disse na minha vida, ou que disse poucas vezes, quando ninguém me ouvia, mas agora apetecia-me mesmo dizê-las alto e bom som, e se ela acordar paciência. Ele acenou com a cabeça e uma piscadela de olho. Que parva, pobre coitada, disse. E acrescentou: são todos uns merdas. Fechou os olhos. Talvez tivesse realmente adormecido.
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Antonio Tabucchi, "Pic plec, plic pec," in O Tempo Envelhece Depressa, pp. 28-31.
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