25 abril, 2007

Memórias # 2


dizem-me.

Era primavera como hoje, um dia útil, como hoje (seria) e o povo não ordenava. O tempo em que a cantiga era uma arma, dizem-me, em que as portas fechadas eram muitas e os becos não tinham saída. Havia um lápis azul que riscava, riscava muito, dizem-me, e “em cada esquina um amigo”.

No tempo em que o que se calava era mais do que o que se dizia, em que não se vinha “para a rua gritar”, dizem-me. Em que as mães de mantilha choravam “ai Deus mo deu, ai Deus mo levou” e levou muitos, dizem-me, no tempo em que a guerra lá longe, mas nossa, fez madrinhas e demasiados regressos à última morada, dizem-me, e o vento nada dizia.

Mas lá se ia “cantando e rindo” com a força que se aclamava, ou sem ela, para onde se dizia ser importante ir, sem que os gritos viessem à rua. “Levados, levados sim pela voz de som tremendo” e temendo, temendo sempre, dizem-me.

Nesse dia a “manhã clara” chegou “depois do adeus”, dizem-me, e foi “mensageira da madrugada”. Vieram cinco e “mais cinco de uma assentada” com “asas de vento e coração de mar”, dizem-me, e as notícias do meu país, que o vento calava e o lápis riscava, chegaram longe e trouxeram quem tão longe estava e abriram as portas fechadas, porque a vontade era “maior que o pensamento” de criar “cidades sem muros nem ameias” dizem-me.

Hoje, 33 anos passados, não precisam já dizer-me, é feriado e “eles comem tudo”. O lápis já não é azul, não risca, mas incomoda, pressiona, aponta. Há becos onde nem os amigos param à esquina, há portas fechadas para esconder “putos” que cosem sapatos, homens que constroem para os seus senhores “vampiros”.

“Gente igual por dentro, gente igual por fora” que não singra, porque não tem cartão, e os que eram diferentes e agora são iguais porque “o que faz falta é animar a malta”.

E diz o inteligente que acabaram as canções ...

1 comentário:

Atlantico Ocidental disse...

Parece-me apropriado o seguinte ditto de James Thurber:

"There are two kinds of light: the glow that illuminates, and the glare that obscures."

Há 33 anos, parece-me que houve mais glare, que glow.