03 setembro, 2022

Coisas que mudaram #20

Abaixo a tradução completa do obituário de Mikhail Gorbachev na The Economist. No dia do funeral do homem que enterrou a União Soviética (mesmo sem o desejar) merece bem mais a pena saber um pouco mais sobre ele, do que de um ditador cuja proximidade linguística prende o nosso país à televisão por uma semana. 

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Mikhail Gorbachev não queria que a União Soviética terminasse daquela maneira

O último líder soviético morreu a 30 de agosto, aos 91 anos
30 Agosto 2022

Os grandes heróis do panteão de Mikhail Gorbachev foram dois pensadores socialistas do século XIX, Alexander Herzen e Vissarion Belinsky, cujas principais preocupações eram a dignidade do indivíduo e cujos livros ele conhecia quase de cor. Quando eles apareceram no palco russo, na trilogia de Tom Stoppard “A Costa da Utopia”, ele foi vê-los. Ao final da apresentação, ele foi chamado ao palco e aplaudido de pé por uma plateia que, em sua maioria, mal havia nascido quando, em 1985, ele se tornou o último secretário-geral da União Soviética.

A perestroika (“reestruturação” ou “reforma”) que ele então iniciou, nunca chegou ao destino que ele queria, um socialismo democrático e humano – talvez porque esse destino fosse a Utopia, e não um lugar real. Para a elite da Rússia moderna, ele é visto com estranheza, se não um traidor: um tolo que provocou o colapso da União Soviética e não ganhou dinheiro com isso. Ele tinha poder, uma vida confortável e o destino de centenas de milhões de pessoas nas mãos – e deixou tudo para trás quando, em 25 de dezembro de 1991, renunciou ao cargo de presidente da União Soviética.

Passou oito horas numa reunião com Boris Yeltsin, presidente da Rússia e seu rival, discutindo a transferência de poder. Depois, foi-se deitar no seu escritório – pela última vez. Quando Alexander Yakovlev, seu camarada mais próximo, entrou, viu lágrimas nos olhos de Gorbachev. “Vês, Sasha”, disse o presidente, “é assim que acontece”.

Ele não pretendia que a União Soviética morresse assim. O homem que acabou com a Guerra Fria, que mudou o curso da história do século XX, não era um dissidente nem um revolucionário. Ele pretendia reformar a União Soviética, não destruí-la. Mas a sua aversão à violência e a sua crença no Iluminismo foram suficientes para acabar com um sistema sustentado por repressão e mentiras.

Gorbachev nasceu em 1931, logo depois de Stalin tomar o poder absoluto e lançar a coletivização que eliminaria os camponeses. Cresceu no sul da Rússia, uma rica região agrícola habitada por cossacos que nunca conheceram a servidão, numa vila chamada Privolnoe, que significa “livre-arbítrio”. Um de seus avôs tinha ícones ortodoxos nas paredes; o outro preferia retratos de Marx e Lenin. Como muitos da sua geração, ele preservou o bom senso e a cautela de um camponês. Ele também tinha a força física de alguém que trabalhou a terra desde tenra idade.

Foram essas sensibilidades e instintos humanos que, anos depois, permitiram a Ronald Reagan ver nele não apenas um marxista-leninista, mas alguém com quem tinha muito em comum. Ambos eram auto-didatas que começaram em pequenas comunidades agrícolas, ambos acreditavam na decência, ambos encarnavam o otimismo e a confiança dos anos do pós-guerra. O fim da Guerra Fria foi determinado tanto pela sua afinidade com Reagan quanto pela inadequação da economia soviética. Como estava mais preocupado em melhorar as condições de vida dos seus compatriotas do que com o status da superpotência (que ele tinha como certo), não via sentido em continuar a corrida ao armamento.

Foi a conclusão lógica de uma jornada que começou com a morte de Stalin. Quando Nikita Khrushchev denunciou o culto à personalidade de Stalin em 1956, Gorbachev foi um dos jovens líderes do partido que teve de espalhar a mensagem entre os comunistas das bases. Limpar o socialismo das distorções do stalinismo seria o trabalho de toda a sua vida. Chegou ao poder sem nenhum plano ou programa de reformas: apenas, após 18 anos de estagnação, a simples convicção de que “não podemos continuar a viver assim”. Em vez disso, ofereceu à União Soviética juventude, energia e – mais ainda – humanidade.

A Perestroika começou com um mau presságio: uma explosão nuclear em Chernobyl. O acidente, que o governo tentou encobrir, resumiu a sua total disfunção, arrogância e desprezo pela vida humana. Aproveitando a oportunidade, Gorbachev condenou um sistema “penetrado de servilismo, lambe botas, perseguição a quem pensa diferente, faz de conta, ligações pessoais e grupos de interesse”. Em seu lugar, ele ofereceu glasnost, abertura. Isso sim, disse ele aos colegas, era o verdadeiro socialismo.

Nesse espírito, em 1989 declarou as primeiras eleições competitivas para o Soviete Supremo. Também concordou pela primeira vez com debates televisivos. Milhões de pessoas viram Andrei Sakharov, um físico dissidente que ele chamou do exílio, desafiá-lo abertamente. Em poucos dias, o monopólio político do Partido Comunista foi quebrado, juntamente com o mistério de seu poder.

Isso também foi um sinal para toda a União Soviética de que esta se estava a dissolver. No início de 1991, tentando desesperadamente segurar o país, Gorbachev aliou-se fatalmente às forças da repressão, enviando tanques soviéticos para a Lituânia. Alguns meses depois, as mesmas forças lideradas pelo KGB orquestraram um golpe e o colocou em prisão domiciliária na Crimeia, onde estava de férias. Quando o golpe falhou Gorbachev voltou a Moscovo, escolhendo ir para casa para cuidar de sua esposa Raisa, que tinha sofrido uma trombose, em vez de tomar o lugar de um político público.

Na sua nunca escondida afeição por sua esposa, ele violou o código que exigia dos governantes russos uma completa abnegação da vida privada. Colocar a vida privada acima dos interesses efémeros do Estado era seu principal credo. Deixar o Soviete Supremo não foi o seu fim, como o foi para a maioria dos seus antecessores. E, ao contrário de seus sucessores, ele não tinha nada a temer, nenhuma riqueza a esconder. Nos primeiros anos após sua demissão, fez anúncios à Pizza Hut para ganhar dinheiro. Pelos padrões da elite russa de hoje, ele era um homem pobre. O dinheiro de seu prémio Nobel da paz de 1990 foi usado para criar a Novaya Gazeta, um jornal liberal da Rússia.

Quando Raisa foi diagnosticada com leucemia, ele acompanhou-a a uma clínica alemã para a segurar nos seus braços de camponês. Pouco depois de a enterrar, apareceu numa festa de bastidores do Teatro de Arte de Moscovo. Um actor chamou o ex-presidente para ler ou cantar alguma coisa. Todos ficaram paralisados ​​de vergonha, excepto Gorbachev. Deram-lhe espaço, e ele cantou o poema de Lermontov, “Sozinho eu parti na estrada. O caminho de pedra está brilhando na névoa.”

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